Canto de Página

Comércio & folclore

Pedro Moreira
Pedro Moreira
Pedro Moreira é professor de Português,
revisor, consultor, autor dos livros
“Casos & Coisas do Pará Antigo”,
“Cronicontos” e
“O Pássaro e a Dona & Outros

Até certo ponto, o comércio está inserido no folclore das comunidades. Haja vista o caso da “caderneta de compras”, um costume presente na história da atividade, desde velhos tempos. Em pequeno formato, ostentava na capa os nomes do estabelecimento e do freguês, além do ano de sua vigência. Nela se fazia o lançamento das mercadorias adquiridas, dia a dia, pelo titular, em cuja guarda ela ficava, cabendo-lhe saldar a conta a cada fim de mês.

Esta seria uma das muitas heranças culturais da Colônia, processo até hoje usual em alguns estabelecimentos – registro de compras a crédito oferecido pelos comerciantes a seus clientes assíduos, principalmente no interior. Parece incrível, mas essa cultura do “anota aí” tornava legítimo que se empurrasse o acerto final para dezembro. Lembro-me de quando, ainda rapazinho, buscava a conta anual de nossa casa na Farmácia Cruzeiro, fundada e dirigida por Júlio Leitão, simpático português naturalizado. Era um maço de folhas avulsas, apontamentos manuscritos com a descrição de produtos de toda espécie, tudo autenticado com a assinatura do freguês. Inflação? Não se falava nessa praga, naqueles tempos. Como bonificação, no ato do pagamento o cliente era brindado com algum “mimo” em forma de sabonetes, perfumes, essências e outros agrados.

José de Melo Mendonça, proprietário de tradicional armazém situado na esquina das ruas Benedito Valadares e Rosário (prédio recém-demolido), era outro comerciante de destaque a trabalhar com o sistema de “caderneta”, a exemplo de José Inácio Marinho, dono da Casa São José, ou de Chiquinho Mendonça e seu sucessor, Dico Mendonça, que tocaram por um bom tempo conceituada loja de armarinho. Pois bem, José Mendonça jamais deixava de mimosear os clientes com uma lata de goiabada ou marmelada “Colombo”, devidamente acompanhada de um queijinho da roça, assim que eles saldassem a conta do mês.

Seu armazém possuía, também, o serviço de entrega em domicílio. Uma carrocinha, puxada por um pachorrento burrinho, saía pelo início das tardes, abarrotada de encomendas, dirigida por um “caixeiro” do armazém, figura folclórica que repetia à porta de cada residência visitada: “Aaaos treeem!” – e berrava este refrão com voz metálica e fanhosa.

Duas lojas, Casa Francisco Mendonça e Casa São José, preenchiam a venda de certa mercadoria mais que especial: pano roxo com florões amarelos, destinado ao revestimento de caixões mortuários. O exímio marceneiro Gerino Duarte, fabricante desses caixões, cumpria tarefa ingrata, que era uma rotineira peregrinação à residência dos “mortos do dia” para tomar suas medidas: comprimento, largura, altura do ventre, o que lhe possibilitava escolher a urna mais adequada entre as muitas que mantinha prontas em sua oficina.

As farmácias, durante décadas, constituíram pontos de encontro dos habitantes da cidadezinha. Ali se falava de tudo e de todos. O cenário era clássico: um balcão central ladeado de sisudas prateleiras, tipo cristaleiras, talhadas em madeira escura, em que se expunha diversificado estoque de produtos. À frente do balcão também ficavam os bancos, recostados à parede, e franqueados aos clientes ou simples freqüentadores do estabelecimento. O farmacêutico, figura central das reuniões de bate-papos, tinha o prestígio assegurado, pois nas solenidades sempre estava perfilado na mesa de honra das “autoridades” locais: o juiz de direito, o prefeito, o presidente da Câmara, o diretor da escola, o vigário, o delegado... Ele era, sim, uma pessoa grada por ser um agente da saúde da população. Assim foi até que vieram os novos tempos e engoliram essa tradição.