
O beijo
O Cine Vitória, dirigido por Tião Mendes, durante bom tempo foi importante espaço cultural do Pará. A seu lado, tinham vez os salões de outras entidades: Centro Literário, Ginásio São Francisco e Colégio das Irmãs, onde se realizaram muitos de nossos acontecimentos sociais e culturais.
O prédio do Vitória, localizado a poucos passos do Hospital Nossa Senhora da Conceição, ficou muitos anos desativado, resistiu ao tempo, até que, graças à solidez de sua construção, pôde ser recentemente reformado para sediar importante magazine.
As novas gerações não avaliam como esse prédio foi representativo para nosso desempenho cultural. Além de sala de projeção cinematográfica, apresentavam- se em seu acanhado palco nossos grupos teatrais ou as companhias vindas de outras cidades. Muitas vezes, também, o salão ficava repleto para aplaudir duplas satíricas, como Jararaca & Ratinho, Alvarenga & Ranchinho (pavor dos políticos da época), ou de cantores famosos, a exemplo de Vicente Celestino. Era ele um caso à parte: voz de tenor e intérprete de canções memoráveis, como O Ébrio, Patativa, Granada, Porta Aberta, Coração Materno, que as gerações carregaram vida afora, tanto pelo vigor de suas mensagens quanto pela sintonia com o sentimento popular.
Celestino, homem de traços italianos, voz cheia, inconfundível, tem lugar de honra na história da Música Popular Brasileira. Durante muito tempo, seus empresários associaram a imagem dele à de um bêbado, um infeliz que vivia a desfiar pelas esquinas da vida sua desventura amorosa, ficticiamente corneado pela mulher amada: Tornei-me um ébrio/e na bebida busco esquecer/aquela ingrata que eu amava/e que me abandonou/ Apedrejado pelas ruas/ vivo a sofrer...
A lacrimosa canção era cantada com um fundo musical lento e sombrio, denunciativo de uma deplorável tristeza. Na vida real, Vicente era um homem feliz, bem casado com uma atriz portuguesa chamada Gilda de Abreu, autora das canções que ele interpretava Brasil afora e vendia em milhares de discos. O curioso é que o ébrio de mentirinha era diabético, não podia consumir um dedal de álcool...
Ainda rapazola, me lembro de tê-lo visto, já de tardinha, acompanhado de assessores, a percorrer a pé a Rua Benedito Valadares, metido num terno de linho branco, rumo ao Cine Vitória. Logo atrás, um cortejo de fãs e curiosos. Ele acabara de jantar no então mitológico ?Restaurante do Chuim? (a melhor comida da cidade), um prediozinho que varou décadas, e que ali está, firme e forte, nas imediações da Padaria Guimarães, com a cara voltada para a Rua Tiradentes. (Como todas as celebridades que nos visitavam, é provável que Celestino tenha-se hospedado no Hotel Central, dirigido por Quim do Neto, de quem se contam às dúzias episódios hilariantes, dada a sua personalidade franca e espirituosa.)
Quanto às apresentações teatrais no Cine Vitória, uma delas ficou eternizada na memória dos paraenses. Ia ser levado à cena um drama especialmente importante e interpretado por dois ícones da dramaturgia brasileira, ninguém menos que Paulo Autran e Eva Todor. O bom da história é que, lá pelas tantas, o casal trocaria apaixonado beijo, o que de fato ocorreu, sob os olhares constrangidos da plateia. Restou, é claro, a ira do vigário, que teve pano para mangas por duas semanas. Também pudera: a gente santa e ingênua da cidadezinha não merecia mesmo tanta ?audácia? dos demoníacos atores da metrópole...

Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros "Casos e Coisas do Pará Antigo", "Cronicontos" e "O Pássaro e a Dona e Outros Textos".