Canto de Página

No “borso” de trás




Pedro Moreira
Pedro Moreira é professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
Em tempos idos, Pará de Minas foi um celeiro de bons oradores. À sombra deles, porém, pipilavam as “patativas” – não os pássaros de melodiosa voz, mas atrevidos discursadores, ousados atropeladores de regências e concordâncias. Chovesse ou fizesse sol, lá estaria uma delas, deslumbrada com o próprio palavrório, pronta para “encantar” as platéias ingênuas. Uma delas tornou-se folclórica por invariavelmente começar as suas arengas com um arrogante Deus me deu o dom da palavra e, neste momento sublime, não posso furtar-me ao dever de... Não havia festa de formatura, auditório escolar, casamento, batizado, aniversário, descerramento de placas ou retratos, enterro, eventos políticos sem que estivesse a postos alguma destemida “patativa”.

Dizem que a discurseira era, toda vez, uma caudalosa torrente de asnices, imagens desgastadas de tanto uso. À beira do túmulo, então, na hora dolorosa da descida do esquife à terra, lá vinha a “patativa” falastrona com sua plangente mensagem, construída bem a propósito de abrir o balaio de lágrimas dos familiares e amigos do morto. Patativas à parte, os clubes sociais, os grêmios lítero-recreativos, até os clubes de futebol cultuavam a discursomania, tanto que elegiam em bloco presidente, vice, secretários, tesoureiro e... orador. Vez ou outra, vinham aqui times de outras cidades para “medir forças” com o legendário Paraense Esporte clube, no campo da Várzea. As “embaixadas” (assim se dizia na época) eram recepcionadas com foguetório e discursos. Também eram comuns as festas de confraternização entre cidades “vizinhas”, assim consideradas mesmo que entre elas permeasse respeitável distância. Não, não poderia faltar o “eloqüente” orador. Assim, antes que a orquestra desferisse os acordes da primeira valsa do baile comemorativo, o presidente do clube tomava a palavra e, com voz empostada, desandava a falar:

— Distintas damas, gentis senhoritas, nobres cavalheiros! Estamos vivendo um instante de indizível orgulho pela presença, neste recinto, da fina flor da sociedade da progressista cidade de ... E para apresentar as boas-vindas aos ilustres homenageados desta noite inolvidável, tenho a subida honra de convidar nosso orador oficial, o ínclito senhor fulano de tal. Com o brilho resplandecente de sua vibrante oratória, Sua Senhoria irá traduzir a inenarrável alegria que ora embala nossa extasiada alma nesta recepção à seleta sociedade visitante! (Ufa! – estou ouvindo o desabafo do leitor.)

Contam as testemunhas desta época que alguns oradores se inspiravam num “manual de discursos para todas as ocasiões”, um tal “O Orador Popular”. Ali, o discursador encontrava as linhas mestras para suas bajulações. Era quando ele escrevinhava algumas frases para um ou outro momento solene. Deu-se que, certo dia, numa cidade da região, uma “patativa” esqueceu em casa o discurso. Tragédia. Ao ser-lhe confiada a palavra, o infeliz, depois de escarafunchar todos os cantos possíveis do terno, não conseguiu estancar a fúria pela lamentável distração e explodiu, num brado de horror e revolta:

— PQP! Esqueci o discurso no BORSO de trás da CARÇA amarela!

Ouviu-se, naquele dia, o pior improviso já feito na cidade. Depois do fiasco, a desastrada patativa emudeceu, encolheu as asas e nunca mais abriu o bico, nem à beira do túmulo de seu melhor amigo.
Outubro 2007