Jornal da Ascipam - Novembro de 2010
Canto de Página

Ah, estes juízes...

Há tempos, um juiz do Paraná submeteu três hackers (ladrões de senhas bancárias via internet) a um corretivo, digamos, nobre demais para infratores dessa laia. A trinca deveria (vejam só) debruçar-se sobre três obras literárias, entre elas o clássico Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Em tempo determinado, os "piratas" teriam de fazer o resumo dos livros, sujeitando-se ainda a uma explanação, cara a cara com o magistrado, daquilo que haviam lido.

Na condição de professor, sempre repugnei essa história de resumo (não confundir com resenha) de obras literárias, em lugar de entendê- -las em sua dimensão, como peças de arte. "Resumo" , a meu ver, é tarefa antididática, porque, além de não aproveitar o brilho estético do texto, acaba despertando no "leitor de ocasião" indisfarçável ojeriza contra a leitura. No caso dos hackers, a questão pode ser encarada por outro ângulo: castigo (ou suplício?), e não medida meramente educativa. Afinal, não há notícia de que fazer resumo de obras literárias potencializa o caráter e a inteligência de alguém.

E se a moda pega, hem? Juízes hipercriativos e cada vez mais irônicos vão instituir, conforme seus humores literários, listas e listas de livros para leitura obrigatória, direcionados a cada tipo de delito cometido. Refiro- -me a crimes não hediondos ? aqueles que o infrator pode pagar ao bel-prazer do juiz: prestações de serviços à comunidade, verbas indenizatórias, doação de cestas de alimentos, roupas e cobertores. No embalo, haveria a alternativa de "cestas literárias" (bem suculentas...) disponíveis para leitura e posterior resumo, substitutivas da carceragem. E olhem que, em muitos casos, o preso tem alimentação saudável, planejada por nutrólogos ou nutricionistas, assistência médico-dentária e jurídica, acompanhamento psicológico, cursos fundamental e médio de ensino, lazer cultural e outras benesses.

Voltemos às ?cestas literárias?. Delas algum espaventado juiz poderia, a todo o tempo, lançar mão para "saciar", sem cadeia, os autores de crimes brandos: Divina comédia, de Dante Alighieri; Os Salmos de Davi; Odisseia, de Homero; O Capital, de Karl Marx; Os lusíadas, de Luís de Camões; Os Sertões, de Euclides de Cunha; Dom Quixote, de Cervantes; Sonetos, de Shakespeare; A República, de Platão. Haja sustança literária!

A iniciativa do irônico magistrado (aquele dos hakers) lembra-me outra sentença não menos excêntrica proferida em Goiás por um juiz afinado com a Ecologia. Lá, em algum rincão, uma senhora de maus bofes desferiu mortíferos safanões contra três beija-flores. Segundo ela, os assanhadinhos a importunavam na hora de preparar a boia da família. Saídas de um bosque vizinho a seu quintal, as renitentes avezinhas surfavam à altura de seus verdes olhos, como se quisessem sugar do brilho deles um néctar imaginário. Para acabar com a amolação diária, abatê-las foi preciso, sem dó nem piedade, aos tapas.

Eis que passa um policial em frente à casa da perversa e a surpreende jogando na lixeira as três criaturinhas exterminadas. Vai entao, o juiz passou o recado final. Agora, durante um bom tempo, a predadora arrependida será obrigada a entoar, em posição de sentido, logo à entrada do Fórum de sua cidade, aos fins de semana, o glorioso Hino Nacional Brasileiro. Uma esfrega indigesta para quem não sabe que mais valem três pássaros no ar do que nenhum (morto) na lixeira...

Pedro Moreira

Pedro Moreira

Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros "Casos e Coisas do Pará Antigo", "Cronicontos" e "O Pássaro e a Dona e Outros Textos".