Canto de Página

“Verdade, sô!”



Pedro Moreira
Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor,
autor dos livros “Casos & Coisas do Pará Antigo”,
“Cronicontos” e “O Pássaro e a Dona & Outros Textos”.
Maneco, pescador e caçador em velhos tempos, hoje curtindo suas oitenta e cinco primaveras, entra em delírio quando se põe a contar as façanhas de outrora. Suas histórias são povoadas de onças, caboclos-d’água e serpentes descomunais, capazes de atiçar a mais fria imaginação. Um de seus casos prediletos, ele assim o relata:

“Certa vez, um fazendeiro destas bandas contratou alguns caçadores para darem cabo de uma onça macho que vinha aparecendo na região e andava fazendo uns estragos nas criações dele. Uma noite a vítima era um bezerro, noutra era uma vaca, noutra era um boi, sem falar nas galinhas bobas que gostavam de passar a noite no alto de pequenas árvores. O fazendeiro já não estava aguentando ver a carcaça de seus bichos espalhada aqui e ali. Eu mesmo tinha mirado a danada, numa tardinha, bebendo água na cachoeira. Cá pra nós, a bichana era um brinco, um couro lustroso, pretinha que nem graúna, uns olhos verdes... uma belezura só! Fiquei uma distância de uns cem metros dela. A valença é qu’eu tava montado, aí tomei um galope serra acima. Senão, cairia no bucho dela... Pois bem, chegou o dia de combinar a estratégia de como capturar o desgramado do bicho. Decidimos espalhar armadilhas pelas trilhas, com iscas vivas: um cabrito, um leitãozinho rechonchudo, ou então alguns quilos de muxiba fresca, qualquer chamarisco capaz de atrair a bichana. Afora isso, alevantamos jiraus no alto das árvores, pra cada caçador ficar de tocaia, espiando lá embaixo, pronto para atirar no bichão assim que ele varasse o breu da noite com a brasa de seus olhos. Lá do alto da árvore, não tinha o menor perigo de a gente ser surpreendido pela onça. Era só ir lambiscando o café amargoso, modo não cochilar, e “espichar as antenas” pra captar o menor ruído. Valia a pena o sacrifício, afinal a paga era uma bolada de dinheiro. Não há de ver que, já de noitinha, cada um caçando seu rumo, eu estava me ajeitando para escalar uma bruta de gameleira onde havia armado o jirau, quando...”

(Maneco respira fundo, os olhos brilhantes de quem diz a pura verdade...)

“Mal enfiei o pé na escada de corda, minha vista embaçou de pavor: a coisa de dois metros, dei de cara com aquele bichão medonho me espreitando, a bocarra arreganhada, uma baba grossa pingando sem parar... Fazer o quê, né? Olhei para ele como quem diz: tô pronto pra morrer ou te matar, desgraçado... Pensei: se tentar subir, ela me avoa nas costelas; se correr, ela vai atrás e me esfrangalha. Confesso que comecei a suar frio, a tremer que nem vara verde, o coração disparado ante aquela cena de pesadelo. Qu’eu me alembre, a onça se sentiu desafiada por minha aparente frieza. Rosnou algumas vezes, ameaçou me arranhar com as garras afiadíssimas, soltou umas faíscas pelos olhos. E a fuça espumando, espumando... Dar uns tiros, cruz-credo, nem arriscar! Até que eu apontasse a espingarda para a cara dela, vupt!, a danada da bichana ia primeiro arrancar um naco na minha goela. Confesso que cheguei a encomendar a alma a Deus, que a situação era apavorante. Imagine você na minha pele, fazia o quê? Inspirado por uma luz divina, de repente soltei um berro, mas um berro daqueles roucos, feito um bezerro entalado, um grito escandaloso mesmo, desses de assanhar até o mais surdo dos tiús. Assustada, a gatona pulou de banda, deu uma assoprada esquisita e fugiu de carreira mato adentro. Hoje tô aqui inteirinho pra contar esta história verdadeira. Pura verdade, sô!”

É, “seu” Maneco, pescador e caçador são farinha do mesmo saco. Vocês dizem cada verdade...