
Minha arte, sua arte
Sentiu um alívio quando, do alto do morro, avistou o casario da cidadezinha. O velho Chevrolet de paralamas bojudos e para-choque de aço não costumava deixálo em apuros nas poeirentas estradas de antigamente. Com ele cortava o sertão mineiro sem nenhuma surpresa desagradável, a não ser um pneu furado aqui, uma vela queimada ali. Eram problemas que ele contornava com facilidade e aos quais já se habituara. Naquele dia, porém, o carrão havia cismado de engasgar e apagar duas ou três vezes, sem mais aquela. Com isto, o viajante de laboratório teve de dormir à beira da estrada erma, na escuridão de uma noite sem Lua e sem estrelas. Dormir, não; cochilar, temeroso de que o pior pudesse acontecer-lhe, como um possível assalto.
Daí o suspiro de alívio ao avistar, na luminosa manhã, a cidadezinha lá no vale, ao mesmo tempo em que experimentava a emoção do caminhante do deserto que avista o oásis salvador e repousante.
"Vou direto para a oficina" – pensou o motorista, benzendo-se, com receio de que o carro apagasse mais uma vez. Já no coração do lugarejo, informou-se com o vendeiro sobre quem poderia fazer um reparo no Chevrolet.
– O Manezinho ali resolve este caso pro senhor. Vire aquela esquina e siga em frente até o bar do Taíco. Fica mesmo ao lado.
Para lá se dirige o ávido viajante. Manezinho era o retrato da modorrenta cidadezinha. Com cara de preguiça, ordena que o viajante abra o capô do carrão. Ainda com cara de preguiça, corre os olhos pelo complicado motor e solta um risinho maroto:
– Já sei onde tá o bichinho. É ali na agulha do carburador.
Ato contínuo, pega uma grande chave de fenda e um martelo. Aplica uma leve pancada e ordena:
– Dá no arranque!
O homem afunda o pé no pedal e o carro pega facilmente.
– Vamo dá uma volta pra confirmá – diz o mecânico.
Em cada esquina ordenava que o motorista desligasse e ligasse imediatamente o motor. De volta à oficina, o viajante pede a conta pelo serviço. Com surpresa, ouve o mecânico informar:
– Baratinho, vinte mil-réis...
– Vinte mil-réis! O senhor está maluco em me cobrar vinte mil-réis por uma simples martelada, não acha?
Manezinho, nada surpreso, retira da gaveta o bloco timbrado da oficina. Ante o olhar incrédulo do viajante, escreve na folha branca: UMA MARTELADA – UM MIL-RÉIS; ARTE EM APLICAR ESTA MARTELADA – DEZENOVE MIL-RÉIS.
Desarmado por argumento assim irretocável, o experiente viajante apenas estende a mão a Manezinho e o cobre com agradecimento de pura gratidão.
(Do livro "O pássaro e a dona e outros textos", a ser lançado)

Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros "Casos e Coisas do Pará Antigo", "Cronicontos" e "O Pássaro e a Dona e Outros Textos".