Canto de Página
Dia da caça

Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor,
autor dos livros “Casos & Coisas do Pará Antigo”,
“Cronicontos” e “O Pássaro e a Dona & Outros Textos”.
Seus detentores, pessoas de alguma forma representativas à sua época, não tinham formação específica nem missão a cumprir. O título era concedido a troco de um pagamento estipulado pelo governo de acordo com a posse financeira dos titulares e o grau de importância da patente. Assim, um sujeito menos modesto, e por ter as burras cheias, corria atrás de um coronelato, desprezando patentes expressivas como capitão ou major. De posse do título, sacramentado por um diploma e pela respectiva farda (reservada para momentos especiais), o felizardo passava a integrar um braço da famosa Guarda Nacional, corporação criada na Monarquia e extinta no governo do presidente Hermes da Fonseca. Eram, portanto, civis que ostentavam títulos apenas honoríficos, mas de certa forma relevantes, por seu caráter seletivo.
Hoje são nomes de ruas, embora quase ninguém saiba informar, por exemplo, quem foram os capitães Abreu, João Cruz e Teixeira. Sim, quem teriam sido essas magnânimas criaturas? Não mais que meia dúzia de paraenses sabe que o coronel Domingos Justino foi o pai de Benedito Valadares; o mesmo sucede com o tenente-coronel Roberto (assim, sem um sobrenome), ativo fazendeiro e mercador de escravos. Segundo a lenda, em sendo um homem de maus bofes, morreu apunhalado por um deles, quando dormia a sesta, refestelado numa rede. De outros personagens lembrados acima se conhece tão somente o nome, restando apenas esmaecidos traços biográficos.
Dizem que naquela distante quadra ocorreu um episódio simplesmente inusitado, tendo como protagonista uma venerável figura da Guarda Nacional. Certa noite envolveu-se numa briga de rua com um rapaz, quebrando-lhe alguns dentes. Confiante em sua patente, imaginou que o incidente passaria em brancas nuvens. Só que, dias depois, teve a desagradável surpresa de receber a visita de dois soldados, a mando do delegado. Os militares exibiram-lhe a ordem de prisão, sem maiores explicações. O homem da patente encomendada nenhuma reação esboçou. Apenas informou aos praças:
— Os senhores me aguardem um momento, que eu vou comunicar a situação à minha mulher e providenciar meus pertences. Com licença.
Minutos depois retornou à sala, mas com um visual surpreendente: envergara o fardão da Guarda Nacional. Um vistoso quepe descansava sobre a augusta cabeça branca e uma espada embainhada corria ao longo da perna direita. Foi logo gritando aos soldados, àquela altura boquiabertos:
— “Tejem” presos! Sigam minhas ordens! Di-reeei-ta, voool-ver!
E o garboso “coronel”, ele próprio, conduziu os dois praças rua afora, rumo à delegacia... Afinal, um dia é da caça.