Canto de Página

O velho circo



Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
A chegada de uma companhia de circo à cidade incendiava-a de euforia. Sua vida modorrenta se transformava, então, num clima de alegre expectativa pela estréia dos espetáculos - reprisados noites a fio, durante duas, três ou mais semanas. As atrações eram as esculturais bailarinas, os trapezistas, os equilibristas, os engolidores de fogo, os mágicos, os motociclistas do globo da morte, a onça pintada e o leão, que não estavam lá para brincadeiras. Ah, sim, para brincadeiras lá estavam os palhaços de nomes engraçados, como Pirola, Charuto, Lacraia e coisas tais.

Alcancei a fase do palhaço das pernas de pau, encarregado de anunciar cidade afora a chegada do circo. Do alto de suas tamancas de metro e tanto, ele exibia a indumentária bizarra: uma calça de pano roscofe, envolta por enorme camisa xadrez inflada, lembrando um balão, e que lhe ia até os joelhos. Essa criatura excêntrica saía pelas ruas centrais exibindo o narigão vermelho e a bocarra ornada por uma tarja branca. Na cabeça, a calva artificial. Não sem razão, a meninada o acompanhava com vivo interesse. Também pudera: lá das alturas, de vez em quando o palhaço enfiava a mão numa sacola de pano e atirava bateladas de pirulitos e balas sortidas, disputadas com avidez por seus acompanhantes. À medida que vencia os quarteirões, ele ia cantarolando o refrão monótono, com uma espécie de megafone à boca:

— O paiaaaço, o paiaaaço / o paiaaaço o que ééé? Em coro ensaiado, a meninada completava:

— O paiaaaço é ladrããão de muiééé!

E tome balas, e tome pirulitos...

Lembro-me de uma companhia famosa, salvo engano o Circo Garcia, que de tempos a tempos se instalava na cidade. Armavase com toda pompa num terreno descampado, no início da Avenida Presidente Vargas, hoje ocupado por lojas comerciais. Não me esqueço de quando, numa tarde de domingo, essa companhia levou à cena uma peça intitulada “Santa Bernadete”. Era a história da jovem camponesa para quem a Virgem Maria costumava aparecer numa gruta, em Lourdes, na França. Uma encenação de encher os olhos de uma platéia ingênua, tão carente de manifestações culturais. Foi então que as senhoras e moças não contiveram as lágrimas, de tanta emoção.

Nestas memórias de circo, entra em cena um de nossos tipos populares - um mendigo apelidado de Caburé, cujos dedos das mãos eram uma avalancha de anéis. Deu-se que, certa manhã, ao som estridente de uma charanga, seguia rua afora um comboio de caminhões com artistas nas carrocerias, puxando jaulas de onças e leões. À frente de tudo, um colossal elefante africano, guiado por um rapaz uniformizado. Caburé, todo serelepe, postou-se de repente diante do animal e passou a fustigá-lo com estocadas de bengala, desferidas em sua tromba. Foi o suficiente para o bicho, enfurecido, envolvê- lo pela cintura e atirá-lo a distância. O pobre mendigo caiu de chapa no chão, gritando de dor. Dali foi direto para o hospital com duas costelas partidas.

O circo, com o passar do tempo, perdeu o antigo fascínio, vencido pelas novas culturas, como exige a perversa roda do tempo. Instalou-se um novo momento. A bailarina da sombrinha não passeia mais em cima da grande bola, o leão bravio emudeceu de vez, o palhaço desceu triste das tamancas e as luzes se apagaram para o definitivo adeus ao velho circo.
Julho 2007