Canto de Página

Doutor Matuto



Pedro Moreira
Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor,
autor dos livros “Casos & Coisas
do Pará Antigo”, “Cronicontos”
e “O Pássaro e a Dona & Outros Textos”.
Meu cunhado José Luís, como bom pescador, tem um balaio de histórias para contar. A maioria vem temperada com aquelas fantasias e exageros tão do agrado da categoria. Uma delas, verídica, envolve a figura de um seu amigo, engenheiro carioca, radicado em Belo Horizonte, e que se apaixonara por pescarias lá pelas bandas do rio Pará. Conta José Luís que, na primeira experiência, o engenheiro manifestou perfeita ignorância em relação aos hábitos rurais mineiros. Já na estrada, a caminho do rancho onde se hospedariam, sugeriu aos colegas de passeio:

– Lá na roça, vamos conversar “tudo errado” com os caboclos, heim? Eles vão ficar nossos fãs...

A bem da verdade, o doutor Jorge estava usando de um conceito politicamente incorreto. Afinal, um cidadão de poucas letras não tem como “errar no português” na medida em que utilizar sua linguagem, própria de seu nível cultural. Lógico, não?

Sabendo disso, a maioria discordou da tese do carioca espevitado. Mas ele insistiu em que “falaria errado” com os matutos. E pronto. Chegando à Ponte do Rio Pará, deixaram a caminhonete à sombra de um bambual e se dirigiram à casa próxima, onde morava “seu” Honório, tradicional tomador de conta dos carros que ali aportavam.

Curtido de sol, olhos pequenos e inteligentes, bigodinho aparado a navalha, chapéu bem encaixado na cabeça grisalha, ele os recepcionou com o acolhimento próprio dos matutos:

– Bom-dia pra todo mundo! Oi, Zé, hoje ucê vai só merguiá os anzó ou vai arrancá uns pixinho no jeito?

José Luís apresentou-lhe o amigo carioca:

– Honório, este aqui é o meu amigo Jorge, engenheiro em Belo Horizonte.

– Prazê, dotô!

– O prazê é todo meu, “sô” Honório. O sinhô mora aqui cum a famia? Quantos fio? E a muié?

- Tenho treis fio, com a graça de Deus. A muié tá bem, brigado!

Os visitantes ajeitaram nos ombros os apetrechos da pescaria e pegaram logo adiante o trilho que os levaria à margem do rio. Para trás ficou Zé Luís a papear com “seu” Honório. Este, certa hora, indagou-lhe:

– Iscuita aqui, Zé, tô achano um trem isquisito... Aquele moço é dotô formado, mesmo?

– Ele é engenheiro.

– Mais cumo pode? Ele proseia iguar nóis aqui da roça...

José Luís segurou uma risada, sem palavras pra desfazer a dúvida que atormentava o pobre do Honório. Apenas esboçou um sorriso de profunda ironia, sentimento que passaria logo ao desastrado doutor Jorge...

* * *

O brasileiro médio, aquele que tem alguma preocupação com a escrita, anda aos trancos com a tal reforma ortográfica. Na condição de professor de português, rejeito a reforma em 90% de suas disposições, considerando-as até mesmo dispensáveis e extemporâneas. Na verdade, as grandes editoras brasileiras, interessadas em colocar seus produtos (livros, revistas, almanaques, enciclopédias, jornais, etc.) em países onde se fala o português, é que se beneficiarão com o “acordo”.

O dinheiro tem lá esse poder. Se ele “reforma” até mesmo as consciências, por que não reformaria o modo de escrever da quase quarta língua mais falada do planeta?