Canto de Página

Fragmentos natalinos




Pedro Moreira
Pofessor de Português, revisor, consultor, autor dos livros Casos & Coisas do Pará Antigo, Cronicontos e O Pássaro e a Dona & Outros Textos.
Estabelecer um paralelo entre o Natal de nossa infância e o de hoje remete-nos à sempre lembrada frase de Machado de Assis: “Mudou o Natal ou mudei eu?”

A verdade é que nada escapa ao moinho do tempo: concepções, até devoções são trituradas ao sabor de novas filosofias. Assim é que pairava o sentido místico do aniversário de nascimento do Salvador, celebrado pela doutrina cristã entre rezas e liturgias. Veio o conceito materialista e mesclou essa devoção: Natal não é somente a data da irmandade cristã, é também a celebração de um dia de confraternização de toda a humanidade, troca de abraços e presentes, de ceias regadas a bons vinhos e comilança de variadas carnes.

No exato momento em que escrevo, ouço a distância o anúncio televisivo de um “CarNatal” na Bahia. Então, o rito de piedade e fé se transformará num pandemônio de requebros, e pulos, e gritos, e espasmos próprios da festa de Momo. De Natal mesmo não sobrará a mais pálida lembrança.

Mudou o Natal, sim, por obra e graça deste animal inconstante e ingrato chamado ser humano...

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Não me perguntem se gosto de músicas natalinas. Ficaria realmente embaraçado em dar-lhes uma resposta pertinente e definitiva. Vejam, gostar de muitas modalidades musicais faz parte de nossa natureza. Afinal, a música funciona como um elo entre etapas de nossas vidas e algum fato marcante, principalmente aqueles que tocam esse lado vulnerável de nossa personalidade, a recordação.

Para mim, as músicas natalinas são um transporte fácil para a infância, uma fase muito feliz de minha vida, com os atores de sempre: meus pais, meus irmãos, meus amigos. A canção Noite Feliz, por exemplo, me transporta aos meus tempos de garotinho da primeira série do Grupo Escolar Torquato de Almeida. Nossa professora de canto, a bonita Ana Capanema, ensinava-nos como entoar a eterna canção. Com sua voz melodiosa e afinada, ela arrancava toda a emoção dos primeiros versos: Noite feliz / noite feliz / ó Senhor, Deus de amor / pobrezinho nasceu em Belém! Eu gostava mais é quando ela encerrava a linda mensagem, abaixando suavemente a voz, movimentando com elegância os braços, como a reger um coral: Dooorme em paz, óóó Jesuuus!

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O menino entrava na loja (Paulista, do Chiquinho Mendonça, do Zé Inácio) e via pendurados no forro vários modelos de velocípede, desde os de assento plano de madeira aos mais sofisticados, os de rodas imitativas de pneus e pára-lamas de metal. Seus olhos passeavam pelos cantos da loja, até que se fixavam nos carrinhos de todos os tipos, nas piorras coloridas, nas bolas de borracha, nas mortíferas espingardinhas de rolha (mortíferas porque não perdoavam um mosquito para o qual fosse apontada), os revólveres de espoleta, com os quais imitávamos os mocinhos do cinema em sua implacável busca aos bandidos.

Hoje não há mais as bolas de borracha daquele tempo, velocípedes há o ano todo (em parte substituídos por carrinhos “Kart”), celulares substituíram as piorras coloridas; o computador, com todas suas implicações, substitui a bicicleta sonhada o ano inteiro.

Isto posto, podemos concluir que até o Natal se tornou eletrônico, ridiculamente cibernético. Fazer o quê?
Dezembro 2007