Jornal da Ascipam - Agosto de 2010
Canto de Página

Mendigo por um dia

Ninguém imaginaria que aquela criatura malvestida, rosto castigado, tinha sido um dos mais prósperos comerciantes da cidade. Já bastante idoso, mas lúcido, mantinha o hábito de quentar sol de manhã, à porta de sua casa, acomodado no primeiro degrau da escada que dava para a rua 20 de Setembro, hoje Benedito Valadares. Um detalhe agravava sua tosca aparência: ao sentarse, a calça pega-frango deixava os tornozelos à mostra, fato que denunciava um adiantado processo de erisipela.

Por ali não passava ninguém que não aproveitasse o momento para dois dedos de prosa com o ex-tocador de movimentada venda de secos e molhados localizada um quarteirão adiante. Então, certa manhãzinha, lá estava nosso personagem curtindo a brisa e os raios mornos do Sol, quando passa um viajante. (Já ia me esquecendo de dizer que o ex-comerciante, ao sentarse no degrau da escada rente ao passeio, tinha o costume de descansar no chão seu chapeuzinho roscofe com a aba voltada para cima, e o dito parecia combinar muito bem com aquelas pernas varicosas e deformadas.) Pois bem, no que passa o viajante, esse atira umas moedas no tal chapéu – “este coitadinho bem que merece uma esmolinha!”

Àquela altura nosso “mendigo” estava a cochilar, mas foi despertado pelo tinir do metal no fundo do chapéu. Ainda deu tempo de ele avistar a figura clássica do viajante carregando suas volumosas pastas. Confundido assim com um pedidor de esmolas, restou-lhe desabafar com seus botões, num acesso de amor-próprio e compaixão:

- Diacho! Quem esse panaca pensa que sou? Quá!... A intenção dele foi boa! Só queria que esse idiota soubesse que eu tenho moeda suficiente para entupir o bucho dele! Deus vai compensar essa alma santa! Vai...

O leitor imagina o nome que desejar para o personagem da história a seguir. Que ele existe, existe; que o caso aconteceu, aconteceu. Mas, para resguardar sua identidade, vamos chamá-lo de Z, e pronto. Ele próprio me telefonou para narrar o fato, argumentando que o episódio (ocorrido há uns quinze anos) é sem dúvida raro e engraçado, razão de cair como luva no perfil deste Canto de Página, um quintal de amenidades. Certo dia, Z agendou uma ida a Belo Horizonte para tratar de assuntos empresariais. Mais que depressa, a esposa inventou de aproveitar a viagem: estava devendo uma visita à irmã. Ficou acertado que o maridão a deixaria na residência indicada, com a promessa de buscá-la à tarde, naquele endereço.

Ele me diz que foi um dia de estafantes entrevistas e consultas técnicas em várias instituições. Nem tempo tivera de almoçar, tendo de se contentar com um magro lanchinho de sanduíche e suco de caju. “E achando bom, que o tempo não me favorecia.” Vencidas todas as etapas daquela maratona, já beirando as 18 horas Z trata de pegar o carro de volta ao Pará, tomando o rumo Mendigo por um dia da avenida Amazonas.

Eis que, bem próximo de Betim, teve um sobressalto; “Uai! E minha mulher?! Deus do céu! Esqueci de pegar a bendita (não confundir com Benedita) lá na casa da cunhada! Vai ser palerma assim lá nos quintos...”

Logo, logo deu meia volta e saiu a toda, tramando uma desculpa qualquer para abafar o inadmissível esquecimento. Uma mentirinha do tipo “demoraram muito a me atender, meu bem!”

Também pudera: depois de tanta canseira, não há cabeça de empresário que aguente...

Pedro Moreira

Pedro Moreira

Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros "Casos e Coisas do Pará Antigo", "Cronicontos" e "O Pássaro e a Dona e Outros Textos".