
Mendigo por um dia
Ninguém imaginaria que aquela criatura malvestida, rosto castigado, tinha sido um dos mais prósperos comerciantes da cidade. Já bastante idoso, mas lúcido, mantinha o hábito de quentar sol de manhã, à porta de sua casa, acomodado no primeiro degrau da escada que dava para a rua 20 de Setembro, hoje Benedito Valadares. Um detalhe agravava sua tosca aparência: ao sentarse, a calça pega-frango deixava os tornozelos à mostra, fato que denunciava um adiantado processo de erisipela.
Por ali não passava ninguém que não aproveitasse o momento para dois dedos de prosa com o ex-tocador de movimentada venda de secos e molhados localizada um quarteirão adiante. Então, certa manhãzinha, lá estava nosso personagem curtindo a brisa e os raios mornos do Sol, quando passa um viajante. (Já ia me esquecendo de dizer que o ex-comerciante, ao sentarse no degrau da escada rente ao passeio, tinha o costume de descansar no chão seu chapeuzinho roscofe com a aba voltada para cima, e o dito parecia combinar muito bem com aquelas pernas varicosas e deformadas.) Pois bem, no que passa o viajante, esse atira umas moedas no tal chapéu – “este coitadinho bem que merece uma esmolinha!”
Àquela altura nosso “mendigo” estava a cochilar, mas foi despertado pelo tinir do metal no fundo do chapéu. Ainda deu tempo de ele avistar a figura clássica do viajante carregando suas volumosas pastas. Confundido assim com um pedidor de esmolas, restou-lhe desabafar com seus botões, num acesso de amor-próprio e compaixão:
- Diacho! Quem esse panaca pensa que sou? Quá!... A intenção dele foi boa! Só queria que esse idiota soubesse que eu tenho moeda suficiente para entupir o bucho dele! Deus vai compensar essa alma santa! Vai...
O leitor imagina o nome que desejar para o personagem da história a seguir. Que ele existe, existe; que o caso aconteceu, aconteceu. Mas, para resguardar sua identidade, vamos chamá-lo de Z, e pronto. Ele próprio me telefonou para narrar o fato, argumentando que o episódio (ocorrido há uns quinze anos) é sem dúvida raro e engraçado, razão de cair como luva no perfil deste Canto de Página, um quintal de amenidades. Certo dia, Z agendou uma ida a Belo Horizonte para tratar de assuntos empresariais. Mais que depressa, a esposa inventou de aproveitar a viagem: estava devendo uma visita à irmã. Ficou acertado que o maridão a deixaria na residência indicada, com a promessa de buscá-la à tarde, naquele endereço.
Ele me diz que foi um dia de estafantes entrevistas e consultas técnicas em várias instituições. Nem tempo tivera de almoçar, tendo de se contentar com um magro lanchinho de sanduíche e suco de caju. “E achando bom, que o tempo não me favorecia.” Vencidas todas as etapas daquela maratona, já beirando as 18 horas Z trata de pegar o carro de volta ao Pará, tomando o rumo Mendigo por um dia da avenida Amazonas.
Eis que, bem próximo de Betim, teve um sobressalto; “Uai! E minha mulher?! Deus do céu! Esqueci de pegar a bendita (não confundir com Benedita) lá na casa da cunhada! Vai ser palerma assim lá nos quintos...”
Logo, logo deu meia volta e saiu a toda, tramando uma desculpa qualquer para abafar o inadmissível esquecimento. Uma mentirinha do tipo “demoraram muito a me atender, meu bem!”
Também pudera: depois de tanta canseira, não há cabeça de empresário que aguente...

Pedro Moreira
Professor de Português, revisor, consultor, autor dos livros "Casos e Coisas do Pará Antigo", "Cronicontos" e "O Pássaro e a Dona e Outros Textos".