Canto de Página

Passeio pela História

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Pedro Moreira
Professor de Português, revisor,
consultor, autor dos livros
“Casos & Coisas do Pará Antigo”,
“Cronicontos” e “O Pássaro e a Dona
& Outros Textos”.
com a chegada, há duzentos anos, da família real de Dom João VI, o Brasil tornou-se uma espécie de casa da mãe Joana da Inglaterra. O império português ficou refém dos ingleses a partir do apoio logístico e financeiro dado aos cerca de 12.000 portugueses que se escafederam para a colônia, fugindo das tropas de Napoleão. Com isso, a turma fujona deixou Portugal ao deus-dará, entregue à própria sorte, ou antes, à sanha dos invasores.

Fatos como este, (eles são numerosos, de encher os olhos de curiosidade) são relatados pelo escritor e jornalista Laurentino Gomes no livro “1808”, uma referência ao ano da chegada da corte portuguesa. Em estilo envolvente, ele revira ao avesso o lado lúdico de um episódio importantíssimo de nossa História. Já o subtítulo anuncia: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.

Ao longo de 414 páginas, recheadas de ilustrações – pinturas, desenhos e gravuras de artistas europeus da época, o autor conduz os leitores a um verdadeiro passeio pela História do Brasil, oferecendo-lhes uma interpretação divertida, sem o ranço acadêmico encontradiço em estudos semelhantes. Por isso, “1808” pode classificar-se como valiosa contribuição às pesquisas de nossa História em forma de uma extensa e bem feita reportagem jornalística. As revelações estão em cada página, em tom de confidências, tal qual vemos em alguns jornais e revistas que costumam vasculhar (quase escrevo escarafunchar) a vida das celebridades, o que, ao cabo das contas, é do inteiro agrado dos leitores. Folheando o livro, colho algumas:

- Dom João e Carlota Joaquina se casaram ainda adolescentes. Ele com 17 anos, ela com 14. Só 6 anos depois é que juntaram os trapos...

- Barbeiros (aqueles do cabelo, barba e bigode) recebiam autorização para suprir a carência de médicos e odontólogos naquela fase primitiva de autoafirmação do Brasil. Eis alguns “instrumentos cirúrgicos” de uso dos improvisados dentistas: segueta, chave de dentes, faca, alicate, “unha de águia” (???), torniquete (!!!), chave inglesa e por aí afora. Haja algodão!

- O jornalista Hipólito José da Costa editava seu jornal “Correio Braziliense” em Londres, a pretexto de evitar perseguições no Brasil. E não é que o bravo jornalista passou a receber uns cobres para suavizar o tom das críticas que, vira e mexe, ele fazia ao rei?... (A corrupção na imprensa já botava as manguinhas de fora...).

- Certa época, foi proibida a perfuração de fossas nas residências para evitar o contágio dos lençóis freáticos. Havia, então, os escravos encarregados de transportar, todas as manhãs, tonéis abarrotados de dejetos (fezes e urina) das famílias que eram despejados no mar.

- João e Carlota jamais formaram um belo par, nem pelos dotes físicos nem pelo gênio. Ele, um bonachão, cara de idiota; ela, uma mulherzinha violenta e autoritária, acostumada a jogar objetos estranhos no rosto de Sua Real Majestade...

- Enquanto os guardiões do erário real metiam a unha, havia casos bizarros como o de um padre que percebia, por mês, o correspondente a 14.000 reais de hoje só para confessar a rainha... Ela, santinha e piedosa, por via das dúvidas deixou encomendadas 1.200 missas em sufrágio da própria alma. Prevenida, a Carlotinha, não?...

Vale a pena ler “1808”, uma leitura amena, instrutiva e reveladora daquela banda circense da História que os compêndios escolares têm por norma empurrar para debaixo do tapete.